Era dia de domingo de festa do Bom Jesus dos Navegantes em Propriá. Ano de 1979. A cidade estava animada demais. Logo cedinho fui acordado e ao sair para sala vi a imagem de meu saudoso pai se projetar naquele ambiente de paz: a nossa casa. Ele havia saído do seu banho matinal e lembrando a minha mãe que as visitas do sertão chegariam para a festa. Aqui e ali se ouviam estampidos dos fogos que eram os únicos barulhos ouvidos nas ruas.
Após a limpeza matinal e o café, minha atenção foi chamada para o som de um grupo de pífanos que pela rua passava. Eram apenas seis tocadores, pessoas simples do povo e da labuta diária que tocavam com verdadeira maestria, um repertório que não casava os ouvidos. Suas roupas, sandálias de tiras, chapéus e o modo de ser era singular. Os pífanos fabricados por eles mesmos de taquara ou outra madeira apropriada. Aqui e ali eles entravam em uma casa e tocavam uma melodia, cantavam tomavam um trago oferecido pelo dono da casa e recebiam uma moeda que era depositada no barco onde uma pequena imagem do Bom Jesus estava ao centro. A retribuição era um largo sorriso e uma reverência e mais músicas. Depois o cortejo seguia, os meninos acompanhavam e a festa estava feita com o povo nas ruas a olhar e sorrir. O Mundo era encantado. Que saudade…
Na esquina da rua das Pedras havia a venda de senhor Aluízio. Era ponto de parada certa para uma dose de Laranjinha ou Termosa de Alabí Cabral. O tira-gosto era um camarão, pedaço de bucho assado, uma laranja, carambola, sarapatel e coisas daquela simplicidade de uma Propriá antiga. Depois de umas três rodadas de zenebra, era hora de segui para próxima “freguesia” e sempre havia um momento de risos quando um dos pifaneiros ficava de “fogo” e embriagado e errava a nota. Nessa hora risos em demasia eram ouvidos e grande resenha se formava. Simplicidade era o que não faltava…
Tudo era plena alegria. Após saírem da rua das Pedras eles seguiam pelo Alto do Aracaju. Por ali viviam personagens como Zé Toucinho, Seu Mingu da bodega, Alcides do Bar, Bomfim, Silvio da Mariola, Seu Galdino, Tonho José e outros que eram visitados. Já miravam a rua da Glória indo ao Bar de Dudica e ali o “pau” comia no centro de tanta alegria. Mais música, aguardente, risos, versos, tira-gosto e alegria! Seu Lessa era fã e servia um prato de peixe, verdadeira moqueca e também entrava na roda. Menino ali não metia a mão no prato. De repente: “Vamo simbora cambada! É hora de passar em “Seu Budega” e adispoís em Mané da Jega, se não eles num dão o adjutório do Santo.”, dizia o puxador de grupo e lá se ia os pifaneiros mais uma vez. Era preciso visitar a todos. “Próximo ano agente volta…”
O Sol já estava a pino quando miravam a rua do Meio e só Deus sabe como conseguiam seguir adiante de tanta cana na barriga com um trago a aqui acolá. De quando em vez alguém pedia para eles pararem e atrasavam e tocar um música e cantavam “Ô de casa, ô de fora….” Rapidamente pegavam de Seu Budega a contribuição e seguiam para Mané da Jega na rua da Frente. Nessa altura da festa, alguém oferecia um prato de comida e o momento era de risos e o contar do dinheiro das ofertas começava. Chegava o horário da procissão e alguém pedia para tocar o música “O Cachorro com a Onça”, preferida de muitos como eu e meu pai. A felicidade é uma simples…
No porto, uma aglomeração de canoas, vindas de tantos lugares era o grande enfeite da festa. Muitas eram pintadas para essa época. Desde cedo as corridas de barcos e algumas canoas velejavam para lá e para cá em bordos no rio São Francisco. A água escura devido às cheias dava uma conotação de mistério e medo. Vento forte, grande maruadas d´agua – ondas -, lanchas, pequenas canoinhas e a chegada da balsa. O mundo ficava colorido…
A procissão tinha início às 3 horas com a saída do Santo abençoando as águas, o povo e a Propriá que naquela época já sentia os reflexos de administrações sem compromisso e o Estado de costas para a cidade de povo bom, cultura, religião e história – a Princesinha do Baixo São Francisco. O Baixo São Francisco pobre enquanto o Sul prosperava (…). A Praça da Estrela e todo centro era tomado por ônibus e ambulantes que vendia de tudo. O parque com os barquinhos, roda-gigante, patinhos e o corredor da morte. Romeiros, devotos e outros vinham pagar promessas ao Santo: gente de moletas, andando de joelhos, lágrimas e velas… Era a devoção em exposição na tradição secular da festa que teve início em 1914.
Naquele tempo o rio cheio permitia a procissão fluvial fazer um grande percurso. Seguia margeando a rua da Frente até o Mastro da Quintino Bocaiúva e Banca do Peixe, em seguida rumava colégio onde era bem recebida com fogos, voltava até o Mastro da Poeira, Nelson Melo onde os fogos eram intensos e a disputa cerrada com entre os mastros para ver quem soltava mais “foguetes”, como assim chamavam. Sempre acompanhada por muitas embarcações até voltar ao porto do Mangaba onde a procissão seguia a pé para Catedral e finalizava com orações, alegrias e o domingo chegava ao fim. Era hora de voltar…
Hoje em dia o rio não enche para embelezar a procissão e a vida morrendo a cada ano sem a força e atenção dos homens. As embarcações a vela sumiram com o advento dos motores. O som gostoso dos pífanos e suas notas não foram passadas adiante. Sua melodia substituída pelos paredões insensíveis e estridentes de músicas que ferem a alma. Onde estão nossos pífanos? Precisamos resgatar um dia.
A noite chega e a cidade é só silêncio na alma. Nas casas a gratidão das famílias porque a festa foi de paz e alegria. Meu pai estende no chão – como de costume – um pano de canoa e todos ficamos ao seu lado, desprezamos as camas de dormir para com ele ficar. Em minha mente de menino passa um lampejo, um filme que faço questão de registrar do dia e revejo os risos das pessoas nas ruas ao passar dos pífanos, a diversão no bar de Seu Aluízio com as “lapadas” de cachaça; o prato oferecido pela alegria e felicidade de Seu Lessa no Bar de Dudica contagiando toda gente; a mão de Seu Budega ofertando o dinheiro tão sagrado para àqueles homens simples do dia a dia. As casinhas simples chamando os pifaneiros para entrar e tocar; Mané da Jega cantando, dançando e bebendo para dali a uns dias ser levado por um enfarte… A vida seguindo adiante deixando a mensagem emblemática da importância de viver o presente e guardar na memória as boas lembranças porque o tempo não volta.
Hoje o mundo entristeceu. Não vejo mais os pífaneiros, a barquinha, nem o rio cheio. As canos de tolda se foram, os amigos velhos são saudades e a vida envelhece deixando lembranças eternas.
Onde estão todos agora? Procuro nas ruas de hoje e não os encontro. Será que cantam e tocam em outra dimensão nessa festa ao lado do Bom Jesus e nós não os vemos? Naquela noite, de tanto pensar eu adormeci sob a proteção do Bom Jesus na casa de amor e paz com meu pai do lado. Da cozinha vinha o cheiro de café em pó que minha mãe até hoje faz que continuo tomando como prova e passaporte para voltar naquele tempo dos pífanos da festa do Bom Jesus de minha infância.
Se você tentar ouvir direitinho, eles ainda estão por aqui…
Por Adeval Marques
(Do livro: Os Meninos dos Campos de Arroz de Propriá)
Link para a música O Cachorro com a onça e outras:
https://www.youtube.com/watch?v=KBogfzbsU2I