As ancas de Rosário Sertaneja: uma história dos prostíbulos em Propriá – Parte 2/3

Protitutas-01

Era final de 1944. Quatro anos se passaram desde a chegada de Rosário em Propriá. Tinha agora 24 anos, mas já era uma mulher com bastante experiência, afinal, a vida dura da prostituição é uma verdadeira fábrica para o aprendizado.

Naquela manhã do mês de julho, muito cedo, ela se acordou com batidas na porta do seu quarto. Era Olga, acompanhada de Sabará e Zabé. Elas vinham se despedir da amiga. Chovia muito e em prantos se abraçaram com Rosário:

– “Nós já vamo, Rosário. Fique com Deus e boa sorte.”, disse Zabé e as demais apenas chorando baixinho. Rosário procurou entender e consultou a dona do prostíbulo, uma verdadeira exploradora.

– Puta que não trepa não come! Cabaret não é asilo e nem pensão e maioria delas é falsa! Disse Guilhermina ao ser indagada por Rosário sobre a saída das amigas, como assim se consideravam.

Madalena era puta e Jesus deu perdão! Aqui todo mundo igual! Elas não tem para onde ir. Deixe elas arrumar lugar primeiro muié de Deus! Replicou Rosário com as mãos em sinal de oração e séria.

– Não é da minha conta. Aqui não podem ficar! Ninguém quer puta véia e eu não sou mãe de ninguém! Elas já deram o que tinham de dá e nem dinheiro tem pra comer! Xispa! Podem ir embora! Disse Guilhermina em tom alto. Ela gosta de Rosário, afinal, se identificava com ela.

Eu pago por elas! Tenho dinheiro! Deixe elas ficar até arrumar um lugar. Pediu Rosário.

A conversar entre Guilhermina e Rosário Sertaneja se estendeu por horas. Enquanto isso as três coitadas aguardavam do lado de fora protegidas pelo pequeno telhado da frente. Todas tinham mais de 40 anos e nenhuma referência familiar na vida. Iguais a Rosário o início da vida delas havia se dado quase pelas mesmas circunstâncias.

Segundo contaram: Zabé foi abandonada pela mãe em um mercado de Maceió e seguiu viagem com um estranho deixando-a trabalhando com uma amiga no mercado de peixe por um prato de comida prometendo um dia voltar. De tanto ser molestada , abusada pelo homem de sua patroa, ela aceitou ir embora de carona em um comboio de tropeiros que desceriam para levar  sal para divisa do rio São Francisco alguns anos depois com apenas 16 anos de idade e foi assim que chegou em Propriá. Era deprimida e sempre chorava calada e viveu por toda vida assim e se perguntando o porque daquela sorte insana. Era uma boa alma, caridosa e gostava muito de crianças.

Olga era mestiça. Falava pouco e sua história também de sofrimento. Fugiu com um rapaz do circo que um dia apareceu em seu povoado. Após dois anos com ele, de lugar em lugar, o pobre homem morreu quando uma das peças de sustentação da tenda central caiu esmagando seu crânio. Sem nada para fazer no circo que era pobre, ela foi deixada na cidade de Laranjeiras e de lá chegou em Propriá com os comerciantes vinda de Trem. Era de poucas palavras e regida. Corpo volumoso e faltava um dedo na mão desde quando nasceu. Gostava de arrumar e usar muita maquiagem. Tava sempre limpa.

Sabará era a mais velha. Alguns diziam que era de Alagoas, outros que do Ceará e assim ninguém sabia ao certo a origem. Em um daqueles momento de família com as demais, ela relatou em surdina que era de “um lugar” onde as pessoas eram muito devotas de um santo famoso, mas que lá quem mandava e sim o “coroné que passava a filha de qualquer um que ele quisesse.” Disse que seu pai era homem de vergonha e foi embora do lugar com a família aventurando outras paragens e levou consigo apenas alguns tocados e toda família. Depois foi contratado para ser jagunço em uma fazenda muito distante de outro Estado. Na primeira “quebra de milho” com os outros cabras do novo patrão, pegou uma bala no peito e lá mesmo ficou. Sua mãe morreu de solidão apenas oito meses depois como louca e passando privações. O irmão Cícero era o mais velho e “abilolado” e sua irmã caçula, ainda criança, foi adotada por uma mulher generosa e assim, com 18 anos, ela preferiu seguir viagem com os ciganos deixando para trás seus irmãos e toda referência familiar. Viva dizendo que dia casaria e teria filhos e um lugar para plantar e criar animais. Tinha os cabelos da cor de fogo que deixavam os homens loucos e as pernas mais fortes e bonitas daquela casa de Deus, o cabaret de Guilhermina.

Naquela vida que levavam havia espaço para contar suas histórias que ninguém queria ouvir e só era compartilhada entre elas mesmas. Ali riam e choravam, gozavam e amarguravam. A solidão dentro delas era algo tão bem escondida que, se alguém ao relacionar com elas as olhasse bem em seus olhos, conseguiram ver o quanto de sofrimento havia no interior daquelas pobres almas, criaturas com ilusões, dores, sofrimentos, verdadeiras marcas de guerra justificando a vida vendendo o corpo a qualquer um e a qualquer hora. Quanta bravura, dor e heroísmo existem na lágrima de uma mulher? Quem sabe decifrar quem realmente elas são? Toda mulher é um enigma.

O certo é que Rosário fez um acerto pesado com Guilhermina. Pagou quarto e comida até que cada uma pudesse fazer algo por si mesma. Ela nunca reclamou desse peso e nunca cobrou nada em troca. Era uma grande alma e por isso venerada por todas.

Por ser muito requisitada, havia dias em que ela atendia mais de seis clientes e não excedia os dez. E foi numa dessas noites que muitos homens chegaram naquele prostíbulo que era referência na arte do amor vadio que um fato aconteceu. Todos queriam a famosa Rosário Sertaneja porque a fama de suas ancas, curvas, quadris, as pernas torneadas, a pele e seu rosto eram de se admirar. O valor dela era o dobro das demais, mas, para ter aquele monumento na cama, valia o preço cobrado, como diziam. No outro diz ela era o comentário dos homens que lhe tiveram por alguns minutos ou horas.

Um caboclo se achou por ali. Ele era chamado por Aninga. Tinha fama de brabo. Era tropeiro e chegou em Propriá com os burros lotado de carga de sabão, óleo de mamona para as tábuas das canoas de tolda, e ferramentas e voltaria com tecidos produzidos na fábrica local do economista Hercílio Porfírio Berenger de Britto. Após descarregar as mercadorias, foi ao cabaret já sob o efeito de álcool e logo na chegada deixou mostrar sua faca peixeira. Tomou dois tragos. Era mal encarado e logo procurou pela famosa Rosário Sertaneja. Juvená Muié, era gay, porém, homem atlético e ligeiro. Trabalhava no suporte do cabaret há muitos anos. Era ele que abastecia os quartos com água e organizando tudo para os coitos. Foi ele quem informou da indisposição de Rosário naqueles “dias de regras”. Aninga bateu na mesa, gritou e disse que tinha dinheiro. Chutou na mesa e jogou uma cadeira no meio da sala chamando a atenção de todos. Sorriso se ofereceu e tomou um tapa tão forte que quase foi ao chão.

Puta que se oferece tá bichada! Eu quero é a Rosário. Quero ver se as ancas delas [e boa mesmo! Disse Aninga. Com quase dois metros se achava o Lampião da época. Uma voz que surgi no final do estreito corredor disse: – Pode vim. Tô esperado. Era Rosário com dores. Aninga então adentrou pelo vão e quase no final encontrou Rosário:

– Não atendo mais hoje e nem amanhã! Disse Rosário.

– Cuma é, sua rapariga! Eu sô Aninga Tropeiro! Tenho dinheiro e rapariga num mim desmoraliza!

Aninga falou furioso e partiu para Rosário que desferiu um golpe de navalha em seu peito e também atingindo no braço direito. Na fúria Aninga apenas sentiu que foi atingindo, porém, continuou avançando contra Rosário que pulou de lado e, muito inteligente, deixou que ele se aproximasse e aplicou o golpe no rosto cortando parte do nariz, descendo o golpe pela boca e bochecha e atingindo a mãe de dele já em tom de defesa. Recuou e temeu Rosário que lhe olhava nos olhos como o cão em fúria. Tamanho foi o estrago que, quando Aninga sentiu o sangue e foi pegar a peixeira, sentiu a mão cortada entre os dedos. Ao pegar o cabo da faca bem afiada sentiu um tapa e em seguida um empurrão pelas costas que Juvená Muié lhe aplicou e foi ao no chão já sem a peixeira, tonto e imobilizado. Foi tanto sangue que jorrou de sua carne que em pouco tempo estava sem forças e pálido cercado de mulher por todo lado. Eram um exercito de sofredoras. Desmalhou ali mesmo.

Esse homem é trabalhador do Coroné Hercílio Britto. Eu acho. Levem ele para uma cama lá nos fundos e amarre o pé dele! Disse Guilhermina, a dona do bordel que, apesar de rude, era extremamente de atitude.

Eram quase duas da manhã. As portas fecharam. Não fosse o prestígio de Guilhermina e as testemunhas, a situação haveria de ter se tornado uma tragédia e foi noticiado no Jornal A Defesa no dia seguinte com o título: “Homem agride prostitutas e apanha no bordel.”, pronto. Estava justificado o ato sob os nomes e juramento das mulheres e outros amigos. Nada como a imprensa e boa defesa. O jornalista que assina era louco pela dona do bordel e ali passava para tomar um gole quase todas as noites.

No outro dia o caboclo Aninga seguia viagem para sabe-se lá onde e acompanhado de quatro capazes enviado por um “certo doutor” muito conhecido na cidade sob as advertências de que não mais voltasse na cidade. Alguns diziam que foi o Coronel Pedro Chaves e outros apontavam para os Tavares ou mesmo dos Brittos. Nunca se soube.

Quanto ao negro valentão, Aningas, soube-se depois que ele era uma espécie de gerente das mulas e trabalhava para um certo comerciante da Bahia e tinha fama de bagunceiro e manhoso e já tinha passagem pela “Pracatória”, como assim chamavam a Polícia na época por alguns. Dizem que não chegou a casa nunca mais. Com isso Rosário Sertaneja ficou famosa e o local respeitado mais ainda. A dignidade não pode ser comprada e mesmo vendendo o corpo uma mulher nunca deixa de ser mulher.

Era dia de sexta-feira de final do ano de 1951. Propriá estava em efervescência. No porto do São Francisco na cidade eram tantas canoas ancoradas que, desde a rampa da Fábrica Muribeca até ás proximidades da fábrica de Tecidos, não havia mais lugar onde se pudesse aportar. Gente de todo lugar chegava e sai. O comércio com muitas mercadorias que abasteciam as micros regiões era referência. Cidade de economia forte, o cabaret não fechava e mais uma remessa de meninas haviam chegado naquele dia. Sabará, Olga e Zabé já haviam ido para outros lugares, mais de ano havia se passado, enquanto a Rosário continuava sua luta. Ela pensava consigo em adquirir um terreno nas proximidades da estação ferroviária e ganhar seu próprio dinheiro e assim se libertar daquela escravidão de vender seu corpo. Era preciso fazer isso enquanto era ainda nova antes que os 40 anos chegasse.

Depois de uma noitada feroz, cansada e sentindo dores na barriga, ela dormiu e sonhou que voltava para casa e lá encontrava sua mãe, seus tios, amigos de infância e deitava na rede que ficava no meio da sala da frente. Ouvia em seu sonho o som do armador da rede ao se balançar, o vento nas palhas dos coqueiros e a felicidade de viver novamente com sua família. A lembrança é um tesouro que nos faz viajar no tempo.

Confira a Parte I nesse link:
www.proprianews.com.br/portal/index.php/2019/02/01/as-ancas-de-rosario-sertaneja-uma-historia-dos-prostibulos-em-propria/

Naquela noite ela acordou chorando e foi até sua velha mala. Pegou as fotos de seus pais, beijou, abraçou, tatiou em busca do rosário que sua mãe lhe deu e começou a rezar baixinho: – Ave Maria cheia de graças, rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte, amém! Santa Maria, mãe de Deus… Rosário voltou a dormir sem perceber em meio a oração e sonhou com sua irmã dizendo: – Vou na sua casa passar uns dias com você! Onde você mora? Ainda lembra de mim? Mamãe vive chorando de saudades. Acordou-se mais uma vez torturada por aquela lembrança e saudade que nunca lhe deixou e não conseguiu mais dormir. Um turbilhão de esperança, saudades e solidão e lágrimas se fez presente. Tinha vontade de voltar… Dentro dela ainda morava uma menina, na verdade, a mulher que habitava naquela matéria, juntas naquela casa chamada de corpo. Esses sentimentos que trazemos não se sabe de onde e para qual finalidade é parte de nossa morte a cada dia. Eles causam cicatrizes porque o corte é feito na parte mais profunda do ser humano: a alma e não nos deixa até que se vamos para a outra morada. É dai que muitos de nós, simples passantes, vivemos em eterna solidão.

Seu rosto agora era sério, pensativo, sorria pouco e estava sempre em alerta. Só agora entendia a carta que sua mãe havia lhe dado e o quanto ela sofreu por isso, pois eram amigas. “Como estará mamãe agora.”, pensava consigo mesma. A idade é mais ligeira que a mocidade, uma fica no passado e a outra nos acompanha para sempre. Dias longos se passaram em forma de anos. Rosário tinha agora 30 anos de idade.

Estávamos em 1951, época em que é publicada no jornal “A Defesa”, em edição de 06 de dezembro de 1951, a primeira relação de candidatos aprovados nos exames de admissão ao curso Ginasial, como também a quantidade de reprovados. É concretizado então o Ginásio para os homens em Propriá entrando em atividade o Ginásio Diocesano de Propriá funcionando no turno da noite, para que os alunos que trabalhassem pudessem frequentar o Ginásio, para essa realização trabalhou muito Jose Curvelo Soares. Alunos é uma verdadeira fonte de renda, como se verificou depois a arte do amor pago.

A Propriá noturna era sombria e silenciosa. Existia até certas superstições que povoavam o imaginário popular como a lenda de um “Cavalheiro da Meia Noite” que, tarde da noite, andava em uma grande cavalo pelas ruas da cidade e quando alguém tentava lhe ver ele já havia passado de onde foi ouvido o som dos cascos do animal. Também falavam de uma certa Mula sem Cabeça que vagava nas noites e até enormes sombras que eram projetadas nas paredes das calçadas ou sepultamentos que eram avistados em algumas ruas como a de Capela e subida da Serapião de Aguiar. Propriá dos boêmios que, ao voltar para casa, diziam terem sido surpreendidos com tapas nos ouvidos sem saber de onde viam e apressavam os passos ou corriam em disparadas.

Uma das partes menos povoadas da cidade localizava-se nas imediações da Fábrica de Tecidos, também na atual Rua do Arame, Avenida Porfírio de Britto e no hoje Bairro Fernandes. Apenas pequenas trilhas as cortavam ao meio, porém, todas essas veredas apontavam para a antiga Estação Ferroviária, no que hoje estão as ruínas e foi o Tiro de Guerra, na atual Rua da Linha que na época era apenas uma estreita linha férrea, cercada nas laterais por mataria baixa, por onde a Locomotiva viajava levando e trazendo almas e mercadorias. Era então um amplo espaço geográfico sem construções e foi ali que nasceu uma Propriá excluída da sociedade que ficou famosa por ser a Rua dos Cabarés.

Continua na parte 3/3

Por Adeval Marques
Graduado em História
Foto: Darel Valença

Envie sua análise, critica, sugestão ao e-mail: proprianews@gmail.com ou no whatsapp: (79)- 9-8849-9585.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Facebook
Twitter
WhatsApp
Email
Imprimir